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Povos da África Ocidental: Ewe, vudum e tambores

  • Foto do escritor: Carol Ussier
    Carol Ussier
  • 12 de mai. de 2020
  • 6 min de leitura

Continuando a série sobre as etnias e a diversidade cultural da África Ocidental, hoje lhes apresento o povo Ewe, que muito influenciou a cultura brasileira (alô "nação Jeje").


Conforme expliquei no primeiro artigo - sobre o povo Tallensi -, reitero que me refiro a etnias como povos originários que mantêm certa unidade cultural e não como povos isolados, primitivos ou selvagens. Também reforço que eu normalmente pesquiso bastante antes de compartilhar qualquer informação, mas boa parte do que escrevo é baseada em experiências e vivências pessoais e, por isso, esse texto reflete também a minha visão. Seja crítica/o ao ler!


Ewe é um dos maiores grupos étnicos de Gana, representando 14% de toda a população do país. Durante meus anos por aqui, não só convivi com muitas pessoas desta etnia, como também ouvi muitos ditados e comentários sobre ela. Apesar do meu contato com os Ewes ser maior em Gana, como indicado na figura ao lado, este grupo étnico não se restringe ao limite geográfico de um país. No total existem mais de 8 milhões de Ewes espalhados entre Gana, Togo e Benim.



É importante ressaltar que a localização no mapa indica a região onde historicamente o povo Ewe se estabeleceu, que acaba também sendo a região onde atualmente a população local é majoritariamente desta etnia. Porém, com a urbanização de cada país acaba também ocorrendo o processo de imigração de pessoas das áreas rurais para áreas urbanas, além de casamentos entre pessoas de etnias diferentes. Ou seja, existem pessoas que se identificam como Ewe (ou "metade Ewe") também em outras regiões destes 3 países, como em Accra, capital de Gana.


Assim como o povo Tallensi, a estrutura Ewe é patrilinear, mas diferentemente do primeiro caso, neste há uma organização socio-política centralizada, ou seja, existem governantes locais. O fundador de cada nova vila Ewe torna-se chief (governante local), estabelece um conselho dos anciões de sua comunidade e exerce sua função até morrer, quando será sucedido por algum de seus descendentes (patrilinear). Não existe, porém, um "Estado Ewe" unificado: cada vila ou comunidade é completamente autônoma e independente. Ou seja, o chief de cada vila é a autoridade máxima, não havendo nenhuma hierarquia entre chiefs de diferentes vilas. Ou, em outras palavras, não existe um "rei" dos Ewe, mas sim vários reis Ewe espalhados entre Gana, Togo e Benim.


Além de atuar como governante de sua comunidade, o chief Ewe - cujo título oficial é "Fiaga" - é considerado a voz da comunidade perante seus ancestrais. Para os Ewes, as pessoas vivas e os espíritos das que já faleceram vivem juntos em harmonia. Na verdade, de maneira ainda mais profunda, os Ewes não entendem o mundo de maneira dual: morto e vivo, humano e espírito, homem e mulher. Para eles, tudo e todos são uma combinação de cada uma dessas coisas e o tangível e o imaterial caminham de mãos dadas. Olhar o mundo através da unidade na dualidade é a base do Vodun, Voodoo ou Vodum, uma religião politeísta e animista praticada pelo povo Ewe e também por outros da região, como os Fon (do Togo e Benim). A palavra "vodun", em Ewe, significa espíritos ou divindades.


Mawu-Lisa - divindade Ewe criadora de tudo (desconheço o autor da ilustração)

De acordo com o Vodum, o Universo foi criado por Mawu-Lisa, que não é apenas a divindade criadora de tudo, mas é tudo. O céu, as águas, os animas, as plantas, os mineirais, nós humanos, os espíritos: tudo é Mawu-Lisa, usualmente representada como uma figura com um lado feminino (Mawu) ligado à Lua e outro masculino (Lisa) associado ao Sol; um lado complementando o outro. Isso significa que em essência o que uma pessoa faz para outra pessoa (ou a qualquer elemento da natureza), ela está fazendo a ela mesma, pois todos somos um(a): Mawu-Lisa.



Mawu-Lisa é onipotente e onipresente e por isso não se relaciona diretamente com os humanos. Também não há nenhum altar ou devoção específica a Mawu-Lisa. A comunicação com o mundo espiritual, além dos ancentrais, se dá através dos voduns, que nada mais são do que representações de elementos específicos da natureza ou do Universo: a água, o mar, o rio, a floresta, etc. Para entender melhor o que eu estou falando, considere que os voduns representam para o povo Ewe o mesmo que os orixás representam para o povo Yoruba (da atual Nigéria). Por exemplo, os Yorubas chamam a deusa dos mares de Yemoja; os Ewes a conhecem como Mami Wata. No Brasil, ela é mais conhecida como Yemanjá.


Por sinal, talvez você já tenha feito a conexão, mas o candomblé é uma religião afro-brasileira que tem suas raízes ligadas a estes dois povos. Infelizmente eu ainda entendo muito mais de etnias da África Ocidental do que de candomblé, mas do pouco que entendo, sei que no Brasil dividimos o candomblé e a cultura afro-brasileira entre algumas nações, entre elas a Jeje e a Nagô. Pois bem, estas duas nações não existem no continente Africano com estes nomes, mas são associadas a diversas etnias. Durante a escravidão no Brasil, "Nagô" eram todas as pessoas que falavam o idioma Yoruba e "Jeje", que significa "estrangeiro" em Yoruba, era o nome pelo qual os Yorubas chamavam genericamente os povos que habitavam a oeste de seu território no continente africano, dentre eles os Ewes, além dos Fon, Akans entre outros.


Os Ewe materializam voduns e energias espirituais através de objetos específicos aos quais são prestados cultos devocionais e são oferecidos sacrifícios (montes de terra, barras de metal, troncos, estátuas em madeira, etc). Por essa razão e por terem uma relação espiritual muito forte com os espíritos de seus ancestrais, entre as outras etnias de Gana as pessoas Ewe são consideradas grandes "bruxas", ou "magos". Existe até certo preconceito de pessoas de outras etnias, principalmente mais velhas, que têm medo do poder mágico das pessoas Ewe ser usado contra elas.


Além de ser famoso pela magia, o povo Ewe também é muito conhecido por suas músicas e danças, sempre acompanhadas de tambores. Dançar e tocar tambores são duas atividades geralmente consideradas essenciais na vida social e comunitária Ewe. Principalmente em eventos importantes, como funerais e festivais anuais, não dançar é equivalente a não exercer seu papel como cidadão e pode ser considerado rude. Isso porque as pessoas Ewe expressam suas emoções e sentimentos por meio da dança, que é uma verdadeira forma de comunicação não-verbal.


Em cada distrito Ewe existem grupos culturais que se apresentam nos eventos e estudam as músicas/danças tradicionais. Eu super indico o de Kopeyia, chamado Dagbe. Neste vídeo, gravado no centro cultural deles, dá para ver os principais instrumentos usados por conjuntos musicais Ewe (da dir. para esq.: Axatse, Kagan, Kidi, Sogo e Boba, o tambor líder). 

Historicamente as danças e músicas Ewe se desenvolveram em conjunto com os três principais pilares da sociedade: religião, lazer/vida social e guerras. Isso significa que algumas danças foram criadas como forma de se comunicar com o mundo espirital ou como rituais para divindades; outras desde o princípio eram dançadas como forma de lazer e outras faziam parte de rituais de prepação emocional e espiritual antes de batalhas, guerras ou caça.


Mulheres dançando agbadza

A dança Ewe mais famosa em Gana - e acho que em outros países também - é Agbadza (pronunciado "abadja"), que tem sua origem ligada à história da imigração do povo Ewe. De acordo com a lenda contada por gerações, antigamente os Ewes moravam na mesma região que os Yorubas (atual Nigéria). Por conta de conflitos entre estas duas etnias, eles migraram para o oeste e chegaram a Notsie, uma cidade protegida por uma grande muralha, onde hoje em dia fica Togo.



Na época foram muito bem recebidos pelo chief da tribo local, mas após a sua morte a situação mudou drasticamente: o rei que o sucedeu, Rei Agorkoli, tornou-se um tirano perverso que mandava matar qualquer pessoa que não seguisse suas ordens. Cansadas de serem torturadas e ameaçadas, as pessoas de etnia Ewe que moravam em Notsie planejaram uma fuga: durante dias as mulheres jogaram água na muralha de barro, para amolecê-la e assim abrir um buraco, por onde todos escaparam durante certa noite e migraram em direção à região onde até hoje os Ewes estão concentrados. Para confundir os guardas de Notsie, os fugitivos caminharam de costas, andando para trás e dessa forma deixando as pegadas ao contrário, como se as pessoas estivessem andando em direção à muralha e não se afastando dela.


Agbadza evoluiu de outra dança criada na época para comemorar o dia em que eles escaparam do tirano Agorkoli. Um dos passos principais da dança consistia em andar para trás, mas ao longo dos anos ele foi sendo adaptado e hoje em dia ele é dançado em todos os sentidos. As músicas que acompanham o Agbadza falam sobre vida e morte, heroísmo, triunfo, liderança e também sofre desafios e por isso passaram a ser tocadas não apenas durante o festival Hogbetsotso em Novembro - que celebra a fuga da cidade murada - mas também em todos os principais eventos Ewe, como funerais.




Agbadza é uma dança muito conhecida em Gana. Nos funerais Ewe, como este que eu participei em março de 2020, é costume dançar Agbadza por horas seguidas. 


Mantendo o que fiz no texto sobre a etnia Tallensi, quero deixar registrada uma das coisas que mais aprendi (e aprendo) com a cultura Ewe: a celebrar a vida a todo momento e de todas as formas. Celebrar a vida dançando, tocando e cantando. Celebrar a vida de pessoas, dos animais, das plantas, de todo o cosmos; de tudo que é Mawu-Lisa. E celebrar a vida até mesmo na morte, afinal para os Ewes vida e morte são apenas dois lados de uma coisa única e vivos e mortos habitam no mesmo tempo e espaço.

1 comentário


Maria Betânia SILVA
12 de mai. de 2020

Interessante, Carol.


Lembrei inclusive de algo curioso ao ver a referência à nação Yorubá. Está no livro de uma autora francesa, Dominique Schnapper, professora da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris.


Pois bem no " À la Recherche de la Citoyeneté" ( se não me falhe a memória, acho q é esse o título) ela diz que sob a designação Yorubá os colonizadores ingleses, quando chegaram à Nigéria, incluíram diferentes etnias, as quais aos olhos deles, tinham algo em comum. Se bem me lembro do texto ela argumenta que era como se a partir de um traço em comum, os colonizadores ignorassem todas as diferenças entre as etnias da Nigéria, homogeneizando- as e o fizeram sob…


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Carol Ussier
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Uma mulher itinerante, que se encontra na diversidade, no coletivo e na profundidade. Morei por quase 7 anos na África Ocidental, onde me reconectei com minha expressão no mundo: a dança. Acredito na arte como ferramenta de transformação e de ativismo, e sigo pelo mundo tentando entender a relação dos povos com os corpos e a dança. 

 

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